Futuca Cuca

O Espelho

Rompe-se o silêncio do apartamento com o soar do alarme em uma espécie de convocação para a vida diurna.

Meus sonhos pareciam bons, mas o dia amanheceu. É hora de dar corda às horas, como sempre apressadas no relógio.

Levanto-me, movimento o corpo, e o ritual diário segue sem muitas pretensões e alardes. Sento-me a mesa da sala para tomar meu café. Entre um gole e outro, me percebo através do espelho. O enorme espelho em frente à mesa que me acompanha todos os dias quando me sento. A lembrança da companhia solitária do meu reflexo, de mim mesma.

Noto o despercebido: nunca reparei por tantos segundos, beirando o minuto, aquele espelho. Paro até a música de fundo e encaro a face espelhada, refletida. Me olho por alguns instantes, não do modo como nos olhamos antes de sair ou depois do banho.

Acabara de chegar à sala, ainda não tinha concluído o desjejum e já olhava o espelho, não para ajeitar o cabelo ou olhar a roupa para pôr fim, abandonar o edifício. Mas olhava como se o que quisesse enxergar não fosse apenas o visível. O que há de invisível e indiscutível na face vista? Nos gestos assumidos, até mesmo no ato de me olhar em frente à tela refletora daquela maneira até então desconhecida.

Encaro-me e percebo: aquela imagem refletida não era mais a mesma de tempos atrás. Presa em um mundo paralelo, contido pelas paredes gélidas do apartamento, a vida externa pouco servia ao meu delírio dos dias. Vivia em meus pensamentos, enquanto o corpo rastejava pela casa, um pensar frenético e frêmito, acomodando a angústia. Os dias passavam de maneira tão diferente. Agora vejo que não eram os dias, era eu quem passava por eles adormecida a qualquer ato fora o de pensar, repensar e amarrar cada nó da inconsciência – embaralhando o juízo.

Os dias não refletiam em mim. Não pensava sobre o que vivi. Os dias eram idênticos, não iguais, pois a cada dia a angústia aumentava.

Carreguei essa angústia para além do apartamento, para além dos dias e semanas, para os meses e, felizmente, não para a vida inteira.

Hoje posso me sentar à mesa e pensar no que vejo, refletir sobre o que vi. Posso ver o dia esvaindo e a noite chegando com a certeza de que vivi, triste ou feliz…mas vivi.

O que o espelho me mostrava era uma nova versão de mim, que já cabia no reflexo. Agora eu podia parar e paralisar minha face no espelho e apenas olhar, refletir e escrever sobre o que vi. Não ando mais apressada, como um vulto refletido. Sem tempo para reflexos e conversas internas, sinceras e claras, para apreciar o vai e vem dos ponteiros, para me olhar no espelho e atravessar o tempo.

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